sexta-feira, 29 de junho de 2007

O dia em que o velho galego deu um nó nos planos celestes da onça

Um dia me acordei num lugar que me causou estranheza,
O céu era mais céu, a terra mais terra, a água mais água,
Os sabiás cantavam num tom de laranja muito mais forte
E uma onça velha me olhava colorir.

Diante do malassombro dei um pinote feito um grilo e fiquei de pé,
Peguei meu bacamarte e fiz mira bem no meio dos olhos pra não etragar o couro.
Eu, caçadorzinho velho que sou, não tremia nem piscava.
Ela, onçazinha velha que era, da minha agonia mangava e sorria.

Me arretei com a risadagem, recolhi minha arma, perguntei pela graça?
Com os córneos quente falei que não ia ter tiro nem pipoco,
Que a ria que eu tava sentindo a pólvora não esfriaria,
Só no tabefe minha ira pararia.

A velha felina se ria mais forte e se levantou.
Então fiz gingado de briga e me preparei pra dar dentada e cabeçada.
Foi tarde quando notei minha desvantagem diante do malassombro,´
Até asa encarnada tinha a amaldiçoada.

Foi um abano só de asa e o céu respondeu.
Uma tuia de trovão do firmamento se derramou.
Eu não sou homem de frouxura nem de covardia,
Mas do susto que levei cai descangotado de bunda no chão.

Então, mostrando os dentes que não era pra morder,
Ela resolveu minhas cores esclarecer.
Como eu tinha chegado naquele lugar
E tudo que eu tinha acabado de perder ou ganhar.

Lá na frente vinha um batalhão de jumentos tocando rabeca, começou a onça,
seguidos de perto por velhas Rainhas Lavadeiras com coroas de pano na cabeça e tocando gaitas
E mais um bando de macacos celestes fazendo brinquedos e tocando realejo.
Logo depois vinha um anjo catimbozeiro, mal desenhado e sorridente com seus dentes de prata, tocando pífano.

Trezentas viúvas choravam pelo seu defunto,
Trezentas amantes choravam pela falta de amores,
Trezentas crianças choravam pela falta do brincante
E trezentas mulheres choravam pela falta da oportunidade.

Os papagaios mais coloridos vieram contando seus contos,
Os canários cantando seus cantos,
Ferreiro gritando desde o primeiro momento
E as abelhas vieram do céu com seus potinhos de mel.

Tinha cavaleiro montado em cavalo elegante e vestindo bela armadura,
Tinha mentiroso montado no cabo da vassoura contando vantagem,
Tinha poeta montado em donzelas enganando a amargura
E tinha louco montado no vento com uma cuia pedindo um sonho.

Vinha uma ala só de mouros com sua pele escura,
moedas no bolso e espada na cintura.
Vinha dançarina coroada pelos desejos do mar,
Sonhos dos marinheiros famintos de gozo.

E no final de tudo isso, lá na rabeira da fila
Vinha o motivo da reunião.
Uma caixa miraculosa feita de angusturas
Que refaz a vida dos viventes.

Dentro dela um velho galego de barba longa
Vestido de sonhos e coroado de saudade.
No peito duas moedas de ouro com cara de criança,
Na mão o direito de mentir e de bulir na vaidade.

Pra esse velho o dragão noturno já soprou
O fogo negro das coisas que não voltam.
A areia do norte já caiu no fundo da botija
E o mal irremediável que aflige todos os homens chegou.

Mas a onça Buzaican não contava com minha amarelisse e sabedoria
E num lampejo pensei num desafio que a onça encurralaria.
Pedi a ela um desafio que na falta de resolução
As garras dela me estragariam sem protesto ou homilia.

De pronto ela aceitou e sorridente as garras afiou.
Então o verbo soltei sem medo nem gaguejar.
A confiança tomando o peito da Buzaican
E a esperança me corroendo o buxo.

E na hora exata fiz o duelo.
Primeiro perguntei qual dos viventes e morrentes tinha maior pontualidade?
E com sorriso ela disse sem nem pisca:
"A onça Buzaican onipotente a caçar".

Então fiz outra pergunta para minha alma salvar.
"Quem mais tem esperança entre os viventes e os morrentes?"
E com as unhas de fora respondeu a pontual:
"O amarelo velho na hora de sua dívida carnal pagar."

Na hora preparei o desafio e lancei:
"Pois se a senhora é poderosa mesmo e tem respaldo com o divino,
A senhora poderia me dar um tapete da pele do bicho mais poderoso e arrogante
Para poder esquentar meu vil corpo carnal depois da morte? "

A Buzaican deu a bilora, bateu asa, rosnou e pulou,
O pelo das costas arrepiou e olhou no fundo do meu olho e disse:
Amarelo sem-vergonha, velho sebento. Te amaldiçôo por todas as gerações,
Mas meu couro não vai pra tua parede de troféu.

Foi assim que o velho galego enganou a morte
Ficou entre os viventes,
Largou o mundo dos morrentes
E conta suas mentiras pra todo o sempre.

Pelos séculos e séculos...

Amém!

segunda-feira, 18 de junho de 2007

O dia em que o velho galego se embolou com a pára-quedista que contava estórias

Estava deitado em minha rede espreguiçadeira
Quando me veio lá da feira uma moça me falar.
Ela era loura, era alta , era magra, os olhos um copo de água onde queria me afogar.
O nome dela era Serafina Presepeira do Pouco Juízo e de muita estória pra contar.

Me falou de uma ida lá pro céu no lombo de seu jumento estelar,
Que tinha colhido umas estrelas e que jogo de criança ia brincar.
No seu regresso esbarrou em uma estrela desatenta e num estouro começou a desabar.
Caia céu, caia moça, caia estrela, caia todo mundo numa noite de luar.

Mas Serafina Presepeira, desajuizada que era, no meio de sua queda resolveu inventar.
Tirou a blusa de chita amarela, fez um nó-cego, dobrou um pára-quedas para parar no ar.
Nua da cintura pra cima, com o vento lambendo seus peitos e fazendo arrepiar,
E lá em baixo todo mundo esperando a pára-quedista nua no chão parar.

Eu já estava mastigando minha imaginação com aquela estória quando percebi que não ia me agüentar.
Pulei da rede, peguei Serafina pela mão, desatei no carreirão para no meu cavalo montar.
No galope robei ela para um por do sol, preparei meu anzol para seu coração ferrar.
Foi cheiro, arranhão, mordida e puxavante. Logo deposi de nove meses tivemos que casar.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Carta para minha Santa Mãezinha

Tenho filosofado sobre minha existência.
Sábios, Reis, eruditos e velhos já tentaram me desanuviar os olhos,
Mas, os únicos que me mostraram uma teoria decente para os assoites Divinos,
Seja por ferro, fogo, terra, água ou couro, foram os Brincantes.

Me falaram que era uma traquinagem do Divino,
Poia, tenho nome dos mais famigerados bandidos infames de todos os tempos.
Sou filho de sangue Mouro, que herdou dos velhos judeus
O rancor eterno e carnal de ter cucificado o menino Nazareno.

Valeime minha Nossa Senhora dos Nomes Mal Escolhidos.
Já sinto até o remorso por feitos antigos.
Não sou culpado pelas, destemperanças, arriações, amarguras e angusturas desses meus enerentes.
Seja de mim advogada, já não tenho muita providência para um e pedir ao Diabo não me agrada.

Prometo trocar de nome para algo mais romântico ou cavalariço,
Um nome de Rei, de escritor ou de poeta.
Assim, vou poder mentir, enganar, ludibriar, escamotear sem ser punido
E minha herança genética não terá problema com as dívidas carnáis com o Divino.

Espero que meu cancão não se perca e que esse bilhete não caia no caminho.
Que a senhora entenda minah angustura.
Aguardo sua defesa celeste
E sua atenção Materna.

Pelos séculos e séculos.
Amém.

O dia em que a onça mostrou como se deve duelar com o tempo

Um dia profano qualquer,
Desses que se acende velas coloridas e coloca pipoca numa cuia em oferenda,
Uma onça pintada, com seis patas, três cabeças, cada uma com uma coroa de refinado metal, entrou pela soleira de minha sala
E me caguetou coisas do mundo dos viventes e dos morrentes.

Falou aqui no meu pé do ouvido
Que lá no quintal, perto de onde se bebe leite de aveloz, estava sentado de cócoras
O velho Santo Simão Julião dos chinelos de couro
Que jogava bolinha de gude com o tinhoso do tempo.

O chinelo do velho Santo Simão Julião chiava e riscava o chão,
O velho Santo Sima Julião, dobrado na gaitada, mangava do tempo,
O tinhoso do tempo se danava com a risadagem e corria virado numa gota
E o pobre do dia, que não tinha anda com isso, era o maior prejudicado e morria na ligeireza.

No final da peleja, em que bicho frouxo corria e cabra valente se mijava,
O tinhoso do tempo, vencido, pegou seus farrapos e desfiados e se retirou,
O velho Santo Simão Julião dos chinelos de couro que risca o chão recolhia suas bolinhas
E Nossa Senhora Mão do Nazareno assistia a tudo de camarote no miolo de um gravatá.

A onça se virou e me falou como quem canta uma Loa:
O tempo corre, se emenda, se arreta, desembesta e se esvai.
Só vai depender do desafiante saber duelar,
Pegar o apressado e arisco pelo rabo e fazer dele um brincante passageiro.

sábado, 2 de junho de 2007

O dia em que uma menininha com cara de menininha se mostrou para uma velha alma com cara de velha alma

Vestida com uma nuvem amiga, dessas meio cinzentas,
As mãos enfiadas no bolso,
Os pés virados pra dentro com quem encabula
E o sorriso aberto desenhando o rosto.
Vinha ela fazendo inveja á todo o batalhão de anjos
Que do céu veio ver ela passar.

Os pintassilgos iam bem na frente mandando o povo dar passagem,
Um sabiá enroscava uma minuciosa trança etária em seus cabelos.
Lá vinha ela, sem dó e nem piedade.
O chiado de seu chinelo estalava forte no ouvido feito um malassombro
E seu cheirinho de mar tomava conta dos sonhos que não foram sonhados mas já se sente falta.

Menininha com cara de menininha que se mostrou para uma velha alma com cara de velha alma.
Tendi piedade. A piedade dos amantes sem medo ou dor,
Pois, fui vitimada por um capricho do carrasco implacável, o Tempo.
Não é por gosto nem por vaidade,
É cosia que não se explica nem se mede.
Pelos séculos e séculos.
Amém.